A Igreja particular à luz da Teologia - III


III. A Igreja particular 

            Uma questão terminológica: melhor “local” (referência à localização espácio-temporal e cultural da comunidade cristã) que “particular” (dá a idéia de parte, pedaço... região administrativa). 
            Segundo a LG 23 e 27, a Igreja particular é uma comunidade episcopal, isto é, guiada pelo bispo e seu presbitério. O Código, recebendo o Concílio, (cân. 369) afirma: “A diocese é uma porção do povo de Deus confiada ao pastoreio do bispo com a cooperação do presbitério, de modo tal que, unindo-se ela a seu pastor e, pelo Evangelho e pela eucaristia, reunida por ele no Espírito Santo, constitua uma Igreja particular, na qual está verdadeiramente presente e operante a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica”. 
            Dois elementos são salientados: a porção do povo de Deus e o bispo com seu presbitério. “Porção” aqui não tem uma conotação territorial: a diocese não é um distrito administrativo, mas sim uma comunhão de relações interpessoais numa comunidade de batizados que professam a mesma fé católica. Esta relação é dos membros da comunidade entre si e da comunidade com seu pastor, que como princípio e fundamento visível da comunhão desta porção do povo de Deus, torna-a sujeito eclesial. No entanto, a territorialidade tem sua importância, pois é o único critério que garante a catolicidade da comunidade eclesial. “Porção” quer significar que a Igreja particular é a presença e a manifestação integral do mistério da Igreja; ela é realmente Igreja toda, sem por isso perder a distinção em relação ao todo presente nela. 
            Eis seus elementos constitutivos:
            Igreja congregada no Santo Espírito: ela é mistério da autocomunicação do Pai pelo Filho no Espírito, é comunhão gerada pelo Espírito para nos fazer filhos no filho. Comunhão gerada pela Palavra e o Sacramento.
            Igreja congregada pelo Evangelho: é comunidade reunida em torno do anúncio do Evangelho, que a faz crescer. Este Evangelho, mais que uma mensagem é uma presença: presente na Palavra e celebrado no Sacramento.
            Igreja congregada pela eucaristia: é ela que constitui a Igreja num determinado lugar. Na carne e no sangue do Senhor renova-se a inteira fraternidade do corpo: “Em toda a comunidade de altar unida para o sacrifício, sob o ministério sagrado do bispo, manifesta-se o símbolo daquela caridade e unidade do corpo místico, sem a qual não pode haver salvação. Nestas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres ou vivendo na dispersão, está presente Cristo, por cuja virtude se consocia a Igreja una, santa, católica e apostólica”(LG 26). A eucaristia, no entanto, não é uma realidade autônoma: ela é fonte e ápice da evangelização: somos batizados para formar um só corpo.
            Igreja confiada ao pastoreio do bispo com a cooperação do presbitério: é a presidência do bispo que confere em plenitude a sucessão apostólica à Igreja local, tornando autêntica a pregação do Evangelho e legítima a eucaristia. O episcopado é elemento constitutivo da Igreja local, não no mesmo nível da Palavra e da eucaristia, mas enquanto está em função delas. Ele, a quem é doado o Spiritus principalis, jamais é visto isoladamente: está sempre rodeado pelos presbíteros, como colaboradores e conselheiros, de modo que seu ministério não é somente pessoal, mas sinodal. O bispo é colocado à frente da Igreja local em virtude de um carisma situado em uma Igreja que o Espírito constrói mediante muitos outros carismas. Se por um lado o bispo preside à Igreja, por outro, desta Igreja, fiel à Tradição, ele recebe a Palavra que proclama e transmite. A ele compete também a presidência da eucaristia na sua Igreja; mas consagrando o corpo e sangue do Senhor, oferecido pela Assembléia, ele não somente celebra pela Igreja e com a Igreja, mas também por meio da Igreja, corpo de Cristo. Há, portanto, uma misteriosa e divina interpenetração, uma compenetração entre o bispo e sua Igreja local. 
            Se o ministério episcopal é o centro visível da unidade eclesial, em uma Igreja originada da comunhão trinitária e nela modelada, todos os fiéis são enriquecidos pela multiforme graça do Espírito em inter-relação e reciprocidade. Não existe nenhum Dom do Espírito que englobe, absorva ou sintetize todos os outros! Ao bispo é confiada a comunidade dos fiéis com suas riquezas espirituais para que vivem e ajam in communione caritatis. Cabe-lhe, portanto, reconhecer a presença dos carismas, ativando a multiplicidade dos ministérios, velando para que tudo coopere concordemente na edificação do corpo eclesial. Assim, o ministério episcopal é ativo na promoção dos ministérios, no discernimento da autenticidade dos carismas, como uma verdadeira episcopé. Ao redor do seu ministério articulam-se as diversas formas de comunhão:
·        Primeiramente a commmunio sacerdotalis do bispo com seu presbitério, fundada no sacramento da ordem. Em comunhão com o bispo e seu presbitério também a Ordem dos diáconos, ministros do Povo de Deus na liturgia, na pregação e na caridade, exercita seu serviço. 
·        É responsabilidade primeiramente do bispo a communio fidelium no interior da Igreja local. Nesta Igreja o modelo da communio aplica-se particularmente à paróquia, como quase última localização da Igreja. Aí se exprime do modo mais imediato e visível a comunhão eclesial, pois que é fundada em uma realidade teológica e numa comunidade eucarística. Certamente, tanto histórica como teologicamente a paróquia é um dado segundo em relação à Igreja local, no entanto, não é de modo nenhum privada de sentido eclesiológico, já que aí está representada de certo modo a Igreja visível estabelecida sobre toda a terra. Aí, como no âmbito das várias associações de fiéis no interior da Igreja local, aplica-se e deve ser vivido o modelo da communio. 
Tal forma de vida eclesial, ícone da Trindade Santa, calcada na comunhão, exige uma forma de expressão na vida concreta da Igreja diocesana, que é denominada pelo conceito teológico de sinodalidade. Tal conceito quer exprimir a participação na vida da Igreja por parte dos fiéis, no modo próprio a cada um, de acordo com os próprios ministérios, ofícios e carismas[1]. Pode-se exprimir esta sinodalidade com as expressões de São Cipriano de Cartago: nihil sine espiscopo por parte dos fiéis e nihil sine consilio vestro (dos presbíteros) et sine consensu plebis por parte do bispo. É neste quadro tão fecundo que se coloca o sínodo diocesano, instituição que tem sua origem no século VI e deve ajudar o bispo em ordem ao bem comum da inteira comunidade eclesial. Nesta mesma linha colocam-se o conselho pastoral diocesano e o conselho presbiteral, bem como outras instâncias previstas pela atual disciplina eclesiástica. 
            Abertura para a Igreja universal: a eucaristia e o episcopado em comunhão com Pedro: “una cum papa nostro” (século III). 



[1] “Sinodalidade” é melhor que “corresponsabilidade” (que não deixa transparecer a diversidade das funções) e “participação” (muito empregado nas democracias modernas, podendo levar a equívocos de tipo assembleísticos). Sinodalidade não somente evoca a tradição sinodal da Igreja como também, por não ser utilizado no mundo civil, deixa evidente a peculiaridade das relações eclesiais, que se exprimem não como autocracia ou democracia, mas como communio.


Texto: Dom Henrique Soares


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