Com olhos simples


 Cardeal Georges Cottier, teólogo emérito da Casa Pontifícia, comenta o livro-entrevista de Bento XVI “Luz do mundo”. O texto foi retirado do site da Revista 30Dias: http://www.30giorni.it/br/articolo.asp?id=23400. Boa leitura!

Fiquei impressionado pela autenticidade e pela simplicidade das coisas ditas por Bento XVI no livro-entrevista Luz do mundo, publicado pela editora Lucerna de Portugal, que reúne as suas conversas com o jornalista Peter Seewald. Em muitas páginas do livro se reconhece um Papa sereno, confiante, que se exprime com liberdade sem esconder nada. Um Papa que fala, com a mesma simplicidade, do seu cotidiano partilhado com os membros da família pontifícia e das grandes questões que tocam a vida de toda a Igreja. 
      Em muitas páginas percebe-se uma límpida confiança justamente pela condição atual e futura da Igreja no mundo. O Papa não parece angustiado. Diz claramente que a Igreja pode parecer em declínio, se é observada de um ponto de vista europeu. Mas acrescenta que isso, na sua opinião, “é só uma parte do todo”. Na realidade “a Igreja cresce e é viva, está cheia de dinamismo”, e “no continente europeu experimentamos simplesmente um determinado aspecto e não também o grande dinamismo do despertar que se encontra verdadeiramente noutros lugares e com que me deparo sempre nas minhas viagens e nas visitas dos bispos” (p. 22). 
      É-nos espontâneo perguntar de onde nasce esta confiança. O Papa considera sem censuras a secularização, o relativismo, a perda do sentido de Deus que prevalece na vida real de muita gente. Diante destes fenômenos, a sua esperança e a sua serenidade não parecem se apoiar em uma sua ideia qualquer, receita qualquer, ou na proposta de algum paradigma antigo ou novo que indique a linha e assegure um bom “estado de saúde” ou até mesmo o “sucesso” da Igreja. Bento XVI repete simplesmente que na Igreja o que mantém acesa a chama viva da fé é o próprio Jesus, porque “só o Senhor tem o poder de guardar os homens também na fé” (p. 18). Apenas neste dado, agora experimentado na sua condição de sucessor de Pedro, repousa a esperança e a confiança do Papa: “Se olharmos para tudo o que os homens, e nomeadamente o clero, fizeram na Igreja, temos aí verdadeiramente uma prova de que Ele sustém e de que fundou a Igreja. Se dependesse só dos homens, a Igreja há muito que já teria perecido” (p. 45). 
      Este é o mistério da Igreja, que aflora do mesmo modo em que Bento se encarrega da tarefa à qual foi chamado. 
      
      “Desde o momento em que a escolha recaiu sobre mim, fui capaz de dizer somente isso: ‘Senhor, o que estás a fazer? Agora, é tua a responsabilidade. Tens de me conduzir! Eu não sei fazê-lo. Se me quiseste, então também tens de me ajudar!’” (p. 16): assim recorda já nas primeiras páginas do livro o dia da sua eleição papal. E este é um fio condutor que passa em muitas suas respostas, com reflexos interessantes também do ponto de vista eclesiológico. Para Bento XVI o papa é “um simples pedinte diante de Deus, mais até do que todas as outras pessoas” (p. 26). Com palavras simples e claras, também o carisma da infalibilidade é descrito em termos próprios da doutrina católica, colocando de lado qualquer equívoco “infalibilista”: “O bispo de Roma”, esclarece Bento XVI, “age como qualquer outro bispo que professa a sua fé, que a anuncia e que é fiel à Igreja. Apenas em determinadas condições, quando a tradição é clara e ele sabe que naquele momento não está a agir arbitrariamente, pode o papa afirmar: ‘Esta determinada coisa é fé da Igreja e a negação dessa não é fé da Igreja’” (p. 19). Segundo o Papa o Concílio Vaticano II “ensinou-nos, com toda a razão, que para a estrutura da Igreja é constitutiva a colegialidade; ou seja, que o Papa é o primeiro no conjunto e não um monarca absoluto que toma decisões sozinho e faz tudo por si” (p. 76). Assim, citando o último Concílio Ecumênico, Bento XVI repete que a responsabilidade compartilhada pelos bispos é um dado constitutivo próprio da natureza da Igreja. E que suas palavras não são declarações de princípio ou fórmulas de circunstância: isso pode-se ver pela importância que ele mesmo atribui ao Sínodo dos Bispos e pelo cuidado e dedicação em ouvir quando encontra os bispos individualmente nas visitas ad limina. Percebe-se bem que nestes encontros preciosos Bento XVI entra em contato direto com os problemas, as aflições e as consolações experimentadas pelo povo de Deus nas diferentes situações locais, como por exemplo as devastações humanas e sociais ligadas ao tráfico de droga da qual lhe falaram “muitos bispos, sobretudo da América Latina” (p. 68). 
      O Papa responde também à possibilidade de proclamar um Concílio Vaticano III. Para ele tal eventualidade ainda não está amadurecida. Mas certamente o critério da colegialidade por ele desenvolvido pode haver importantes progressos no ecumenismo, principalmente no que se refere às relações com as Igrejas Orientais. Tais Igrejas, repete Bento XVI, “são verdadeiras Igrejas particulares, apesar de não estarem em comunhão com o papa. Neste sentido, a unidade com o papa não é constitutiva para a Igreja particular”, mesmo se a falta de uma tal unidade “representa, por assim dizer, uma insuficiência dessa célula vital. Continua a ser uma célula, pode denominar-se Igreja, mas na célula falta um elemento, que é a ligação ao organismo inteiro” (p. 93). 
      
      Também em muitos outros detalhes entende-se que a força inerme e serena perceptível no Papa não é proveniente de si mesmo: “Percebo”, diz de si mesmo, “que quase tudo o que tenho de fazer não poderia fazer sozinho. Bastaria apenas isso para eu, por assim dizer, me ver obrigado a entregar-me nas mãos do Senhor e dizer-lhe: ‘Fá-lo Tu, se o queres’” (p. 25). Bento XVI reconhece que não é um “místico” (p. 25). Confidencia que reza invocando Maria e os santos: “Sou muito amigo de Agostinho, Boaventura e Tomás de Aquino. Também a esses santos se diz: ‘Ajudai-me!’.[...]. Neste sentido, entrego-me na Comunhão dos Santos. Com eles, por eles fortalecidos, falo então também com o Bom Deus, pedindo sobretudo, mas também agradecendo; ou alegrando-me, simplesmente” (p. 27). Bento XVI não se apresenta nunca como o fulcro de uma espécie de projeto de pontificado. Para ele, o bispo de Roma, “quando se exprime na qualidade de pastor supremo da Igreja, consciente da sua responsabilidade, então o que ele diz já não é algo pessoal, algo que lhe tenha ocorrido” (p. 19). Mesmo assim, justamente por este seu modo de olhar e enfrentar as coisas agradáveis ou tristes ocorridas na Igreja nos últimos tempos, entende de maneira surpreendente aquilo que realmente pode abrir os corações ao anúncio cristão e desarmar as objeções do momento atual. 
      Penso ao modo com o qual o Papa volta a falar dos trágicos casos de pedofilia e dos abusos sexuais cometidos por sacerdotes. Diante do mal emerso entre os cristãos, Bento XVI repete as palavras já ditas no passado: mortificação, penitência, pedido de perdão, sem esconder nada, sem vitimismo ou complotismos. Ele também nota que houve “um prazer em comprometer a Igreja e, se possível, desacreditá-la” (p. 36). Mas reconhece antes de tudo que “só porque o mal estava na Igreja, outros puderam utilizá-lo contra ela” (p. 37). Segundo ele “poder-se-á pensar que o diabo não suportasse o Ano Sacerdotal e que por isso nos atirou a imundice à cara. Quis mostrar ao mundo quanta imundice existe precisamente também entre os padres” (p. 43). Mas por outro lado talvez “poder-se-ia dizer que o Senhor tenha desejado nos pôr à prova, chamar-nos a uma purificação mais profunda, para que celebrássemos o Ano Sacerdotal não como uma forma de triunfalismo, de auto-enaltecimento, mas como um ano de purificação, de renovação interior, de mudança e sobretudo de penitência” (p. 43). E com a habitual chamada à co-responsabilidade episcopal, diz claramente que “a primeira palavra deviam pronunciar os bispos” (p. 38). Com a mesma lucidez de olhar percebe o que de bom e grande floresce na Igreja, e a dinâmica gratuita deste florescer. Trata-se sempre de “iniciativas que não resultam da imposição de uma estrutura, de uma burocracia”, porque, “a burocracia está gasta e cansada” (p. 64). Olha com tristeza para os “chamados católicos de profissão” (p. 139), enredados nos aparatos e nas nomenclaturas, mas fica confortado pelos novos brotos de vida cristã que vê nascer também em terras secularizadas: “A missa em Paris foi extraordinária. Estavam milhares de pessoas reunidas na esplanada dos Invalides, de fronte da igreja, numa intensidade de oração e fé que me comoveram […]. Para mim, foi muito importante ver que na França dita laica, hoje como ontem, há também uma enorme força da fé” (p. 117). Assim recorda a sua viagem em terras francesas. “O Senhor”, repete o Papa, “nos disse que no meio do trigo haveria de existir o joio, mas que a semente boa, a Sua semente, continuaria apesar de tudo a crescer. Nisso depositamos a nossa confiança” (p. 35). 
      As perguntas verdadeiras e aprofundadas de Peter Seewald permitem que o Papa diga palavras belas e intensas sobre uma ampla série de temáticas. Há muitas referências a João Paulo II, para com o qual Bento XVI usa expressões de afeto e devoção. E quando o entrevistador pergunta-lhe se é um peso o confronto com as capacidades de comunicação mediática de seu predecessor, responde sincero: “Disse para comigo: sou quem sou. Não tento ser outro. O que posso dar dou, e o que não posso dar também não tento dar. Não procuro fazer de mim algo que não sou” (p. 114). 


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